APONTA RELATÓRIO
Maioria das presas em MS é mãe, preta e com ensino fundamental incompleto
Relatório realizado pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul ainda revela que 56% das encarceradas se envolveu com o tráfico de drogas para sustentar os filhos. Após serem presas, a maioria nunca recebeu visitas.
A maioria das presas em Mato Grosso do Sul é mãe, preta e com ensino fundamental incompleto. Os dados são do relatório "Diagnóstico com perspectiva de gênero e atendimento pelo Nudem das mulheres privadas de liberdade" da Defensoria Pública do estado, divulgado esta semana.
O relatório, feito pelo Núcleo de Atendimento e Defesa à Mulher (Nudem) em parceria com a Coordenadoria de Pesquisas e Estudos (Cpes), ainda aponta que 56% das presas se envolveu com o tráfico de drogas para sustentar os filhos e que após serem presas, a maioria nunca recebeu visitas.
O diagnóstico foi realizado durante os meses de maio a setembro de 2022 com 70% das internas da maior penitenciária de Mato Grosso do Sul, o Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi.
Participaram a coordenadora do Nudem, defensora pública Thais Dominato; a assistente social, Elaine França; a psicóloga Keila de Oliveira; e o pesquisador e sociólogo Raphael de Almeida.
“Conseguimos fazer constatações e cruzamentos de dados, que são fundamentais para que a gente consiga compreender, analisar as nuances e variáveis do encarceramento feminino”, explica Dominato.
O defensor público-geral, Pedro Paulo Gasparini, comenta que os dados colhidos na pesquisa vão impactar além do atendimento e execução da pena. “[Vão] também fornecer aos demais personagens que participam do acompanhamento dessas mulheres no cárcere promoção e melhoria dos seus direitos, e para que realmente elas tenham acesso às necessidades básicas enquanto privadas de sua liberdade”, afirma.
Da esquerda para direita, Pedro Paulo Gasparini, defensor público-geral, Thais Dominato, coordenadora do Nudem e defensora pública; Elaine França, assistente social; Keila de Oliveira, psicóloga; e Raphael de Almeida Silva, pesquisador e sociólogo. — Foto: Renata Fontoura/g1MS
Resultados
De acordo com o levantamento, a maioria das mulheres presas têm entre 18 e 29 anos, são pretas, com ensino fundamental incompleto e mães, sendo que 90% têm filhos menores de 12 anos.
A defensora pública Thais Dominato cita que muitas foram presas trabalhando em serviços que não exigem escolaridade e/ou qualificações. “Apareceu muito faxineira, diarista, babá”, aponta.
Confira abaixo os principais pontos do diagnóstico divulgado pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul:
98,26% declaram-se mulheres cisgênero e 1,74% se identificou como homem transgênero;
76,09% declararam-se pretas ou pardas;
20,43% declararam-se brancas;
3,04% declararam-se indígenas;
51,30% possuem ensino fundamental incompleto;
77,82% não chegaram a concluir o ensino médio;
41,74% apontam necessidade econômica e financeira como fator que contribuiu para a atual prisão;
89,57% possuem filhos;
59,71% tornaram-se mãe antes dos 17 anos;
90% eram responsáveis pelo sustento material de alguém antes de ser presa;
57,83% nunca receberam visitas;
30,43% indicaram ter sofrido violência e/ou abuso sexual na infância e na adolescência;
58,57% também foram vítimas de violência doméstica antes da prisão;
64,96% fazem uso de medicamentos de uso contínuo psiquiátrico, dentre eles, 43,59% passaram a utilizá-los após a prisão.
Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi, em Campo Grande. — Foto: Renata Fontoura/g1 MS
O estudo também destaca que a necessidade econômica é um motivo por traz das mulheres cometerem crimes.
“O envolvimento amoroso e sexual veio só depois, e o número de resposta relacionadas a isso foi bem menos do que a necessidade econômica. O que já cai por terra os estereótipos de que as mulheres cometem crimes porque estão envolvidas sexualmente ou amorosamente com alguém que pratica o delito. E a grande maioria encarcerada é em razão dos crimes relacionados às drogas”, pontua a defensora pública.
“Nos chamou também muita atenção, e isso nos tocou bastante, que mais da metade das entrevistadas tiveram seu primeiro filho entre 11 a 17 anos. Isso, e depois a gente precisa aprofundar melhor, é claro, o forte indício de que os filhos são fruto de violência sexual”, revela Dominato.
Sobre isso, a assistente social do Nudem, Elaine França, questiona a respeito do futuro das meninas adolescentes. “Quais as oportunidades de vida que elas vão ter? É evidente a vulnerabilidade que essas famílias enfrentaram. A primeira consequência de uma gravidez precoce é sem dúvida nenhuma o abandono escolar”, revela.
No diagnóstico, há um grande número de mulheres que foram violentadas ao longo de sua vida: 30% das presas já sofreram violência, ou abuso sexual, na infância e na adolescência. “E mais da metade sofreu violência doméstica antes de ser presa”, afirma a defensora pública.
“Também observamos a violência obstétrica. Dentre elas, 18 tinham tido filhos no presídio. Dessas, apenas três tiveram uma oportunidade de ter uma acompanhante na hora do parto. Para as demais, ou foi negado, ou nem tiveram acesso a informação que tinham direito de ter um (a) acompanhante”, declara assistente social do Nudem, Elaine França.
Líder do lar
Durante o estudo, 90% das internas declararam ser a grande responsável economicamente pelos próprias dependentes, ou seja, eram elas que sustentavam os filhos.
“Em relação às visitas, e isso a gente também depois precisa comparar com o sistema carcerário masculino às mulheres: apenas 25% delas recebem visitas. E foram mencionados como os principais motivos: a distância física das pessoas que poderiam visitar, a falta de condições econômicas dessas pessoas, mas também aparece o desinteresse dos possíveis visitantes. Bastante marcante esse abandono afetivo”, comenta a defensora pública Thais Dominato.
Quase 70% das entrevistadas tiveram algum vínculo rompido. O principal deles é em relação aos filhos. “Há um impedimento da maternidade nesta situação do cárcere”, reforça Dominato.
Para a psicóloga da Nudem, Keila de Oliveira, ouvir todas essas mulheres privadas da liberdade foi também importante para elas mesmas.
“Muitas não acreditavam que poderiam ser ouvidas. Então, como a escuta é algo essencial de nós pessoas humanos. E essas mulheres refletem a desigualdade desse perfil, jovens, negras e pobres, julgadas a todo momento e por elas mesmas. A solidão do cárcere, a grande maioria disseram que elas concordam, que tem até vergonha que a mãe vai visitá-las, de pensar que os filhos têm que passar pelo constrangimento. Elas não queriam estar ali, sofrem muito com essa solidão”, afirma a psicóloga.
Por fim, ela garante que é importante mudar a forma de responsabilizar todas as mulheres que tomam, em algum momento, o rumo da criminalidade.
“É importante pensar numa ordem social, em como se organizar a sociedade, mas o jeito que tem sido pensado e exercido essa responsabilização nas mulheres envolvidas no tráfico, não tem nada de humanidade. Os relatos de humilhações no processo de prisão são narrativas que nos impactaram muito, e fica gritante como a sociedade é misógina, e que precisa evoluir muito”, finaliza Oliveira.
Por G1/MS